Entendendo os quadrinhos e desenhos japoneses: Por que heróis que parecem garotas?

21 maio 2011

A composição de uma obra narrativa (e de uma obra em geral) envolve o emprego de símbolos que constroem o universo da trama. A compreensão desse simbolismo inerente a toda produção humana envolve um processo de decodificação cultural. Assim, lendo um manga ou assistindo um anime você não apenas se vê defronte a símbolos que não fazem parte de seu cotidiano, aos quais você não consegue decodificar de pronto, como se vê confrontado com símbolos que apresentam formas conhecidas mas que guardam significados distintos. Um pequeno exemplo desse fenômeno é a cruz. No ocidente influenciado pela tradição cristã, a cruz simboliza a redenção humana e o sacrifício último de Jesus Cristo em nome desta redenção. Sob muitos aspectos é um símbolo da esperança. Quando os japoneses foram visitados pelos ocidentais (portugueses e espanhóis) pela primeira vez os ensinamentos católicos foram apresentados nos esforços de catequisação mas quando, no início do período Tokugawa, os gaijins foram expulsos e o Japão iniciou um processo de descristianização, de todos os ensinamentos o único que sobrou foi o de que a crucificação era um método de punição e humilhação bastante eficiente. No Japão feudal a crucificação foi incorporada como método extremo de punição sem qualquer menção à redenção de Cristo. Assim a cruz sobreviveu no Japão moderno como uma lembrança e símbolo da crueldade dos tempos feudais. Associando a cruz à religião, no Japão, ela se converteu em um símbolo do oculto, para a população não cristã, obviamente.




Ser capaz de absorver de modo mais eficiente toda a informação disponível quando se contempla um manga ou anime envolve a necessidade de um conhecimento maior sobre o simbolismo oriental e sobre a própria história japonesa. Com o intuito de clarificar todo esse turbilhão de informação que passa muitas vezes despercebido em nossas leituras, analisemos a origem e significado do simbolismo e estética presentes nestas obras. Vejamos nesta primeira parte o porque de tantos personagens japoneses terem ares afeminados.

Podemos selecionar alguns personagens masculinos com características bastante femininas para exemplificar. Citemos Kurama (Yu Yu Hakusho), Mu de Áries (Cavaleiros do Zodíaco) e Kenshin (Samurai X).


A cultura pop moderna japonesa tende a exaltar a androgenia, o que se verifica em muitos grupos musicais como Versailles:
Uma excelente banda de power prog japonesa.

No entanto apontar esse gosto pela androgenia manifestada no cenário musical como fonte criadora do mesmo fenômeno em seus quadrinhos e animações é uma análise muito superficial. Ainda que uma mídia influencie a outra nestes termos, a androgenia na estética de palco surgiu no oriente por volta dos anos 1980 com bandas como X-Japan, como uma influêcia direta do Glam Metal ocidental. Já nos quadrinhos nipônicos, essa estética foi adotada desde o final dos anos 1960 e início dos 1970. A origem e estabilização desses heróis afeminados é ainda mais antiga e se mantem sobre duas bases distintas.


A primeira destas bases repousa na era guerreira do Japão, no tempo dos samurais. O sexo homossexual era parte do treinamento samurai e a prática entre um mestre mais velho e um jovem aprendiz era muito comum. O sexo em si não era tudo, existindo mesmo o sentimento amoroso. A literatura samurai, estruturada e bem estabelcida no século VII, depois do auge samurai, como uma manifestação saudosista dos antigos ideais, é cheia de referências a lindos jovens de traços leves e que eram também excelentes espadachins. Entre esses jovens encontram-se os modelos Yoshitsune Minamoto e Shiro Amakusa (esse retratado em Samurai Showdown de forma totalmente desvirtuada). Assim a caracterização de heróis com ares delicados não se configurou em um tabu na literatura japonesa.

Essa tradição de heróis afeminados foi continuada pelo teatro Takarazuka, fundado em 1913 por Kobayashi Ichizo que traz um elenco exclusivamente feminino. O Takarazuka, criado inicialmente com a intenção de apresentar peças de inspiração ocidental, passou com o tempo a encenar também obras clássicas japonesas. Dentre essas obras, muitas se refiriam à tradição samurai e assim o público passou ver a delicada beleza dos guerreiros, sobre a qual apenas haviam lido, encarnada em garotas de verdade, fantasiando serem homens. Na verdade, dada à natureza do teatro, todos os homens eram retratados como bishonen (homens jovens de beleza andrógina). Com o passar do tempo o público do Takarazuka passou a se consolidar nas jovens pré-adolescentes e se tornou um fenômeno razoalvelmente comum a primeira paixão de garotas japonesas ser um membro do teatro. Isso é aceito pelos pais que não enxergam nisso qualquer sinal de lesbianismo e acham até mesmo sadio que a primeira experiência amorosa de suas filhas seja uma figura gentil e delicada como as atrizes do Takarazuka.
A segunda base nos leva à produção de mangas no pós-guerra japonês. Nesta época os mangas eram divididos basicamente em shonen e shojo. Os shonen eram mangas para garotos, cheios de ação, esportes. violência e sensualidade. As tramas eram intrincadas e interessantes mas o desenvolvimento das personagens era bastante fraco. Os shojo eram mangas para garotas, cheios de romance. As tramas eram fracas mas o sentimentalismo das personagens transbordava das páginas. O ponto em comum dos dois estilos era que nos anos 1950 ambos eram escritos por homens. Assim os shojo mostravam na verdade uma visão masculina (e tipicamente machista) do universo feminino. Essa visão era tão açucarada que nem mesmo as garotas gostavam inteiramente, mas liam de qualquer maneira, pois era melhor do que nada. A geração de leitoras que cresceu com estes mangas se inspirou em se tornar uma geração de quadrinistas e estava disposta a fazer um trabalho melhor do que aquele feito pelos autores de sua juventude. Essa geração de autoras trouxe para os anos 1960 e 1970 um novo estilo de shojo, com tramas muito mais ricas, mais ação e mais aventura. Em tais tramas muitas garotas se tornaram protagonistas de aventuras épicas enquanto seus pares românticos, ainda que fortes e heróicos eram sensíveis, românticos e meigos. A ligação entre as duas bases se dá justamente neste contexto. Essas autoras também cresceram adorando o Takarazuka e trouxeram muito da estética do teatro para o pares românticos e para seus heróis masculinos, dando vida nos quadrinhos a seus homens ideais: Bravos, fortes mas ainda sim delicados e apaixonados. Estas tramas shojo eram mais ricas do que as shonen pois valorizavam não apenas a trama como também o desenvolvimento das personagens, criando níveis de complexidade que não se viam nos mangas exclusiavamente masculinos. Essa geração de mangas influenciou muito o desenvolvimento seguinte desta arte, consolidando essa tradição estética em se representar heróis com ares andróginos. Obviamente, dada a forte ligação entre estas mídias, os animes seguiram esta linha conforme eram produzidos.

Nos anos 1980 um guerreiro afeminado era quase sempre sinal de que este indivíduo era um herói. Nos anos 1990 o Japão começou a receber a influência homofóbica da América e começaram a escassear garotos afeminados que fossem guerreiros. Quando apareciam era mais comum serem vilões malévolos como Yurimaru de Ninja Scroll


Ou Genbu de Akai Hayate.
Vemos então que a tradição literária samurai criou os precendentes que minaram um possível tabu de se representar guerreiros de modo andrógino. O teatro Takarazuka utilizou essa liberdade estética em suas peças e influenciaram a primeira geração de autoras de mangas do Japão que retratavam segundo estas linhas muitos personagens masculinos como sendo os modelos heróicos de seus homens ideais. Eles eram bravos mas delicados, heróicos mas românticos e delicados. As histórias dessas autoras deram os moldes nos quais os mangas e consequentemente os animes se desenvolveram nas décadas de 1970 e 1980. Nos anos 1990 a influência homofóbica ocidental reduziu o número de garotos andróginos e reduziu sua androgenia e quando estes apareciam não eram mais comumente heróis mas sim vilões. Isso, porém, abriu precedentes para que qualquer tipo de personagem fosse caracterizado como um bishonen até o momento atual onde este tipo de caracterização não qualifica necessariamente uma personagem como herói ou vilão.


Fonte: Levi, Antonia. The Samurai from Outer Space. Open Court, Illinois.
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1 comentários:

Anônimo disse...
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